Texto Pedro Burgos
Uma droga poderosa, mas inofensiva. Socialmente aceita, saborosa, capaz de manter você desperto e produtivo por mais de 3 horas, sem grandes riscos, efeitos colaterais leves. Tudo isso por menos de R$ 2. Você acreditaria?
Eu nunca engoli essa história. Sempre que ouvia alguém recusar um expresso no jantar para não prejudicar o sono, desconfiava do poder da cafeína. Tudo isso por causa de um cafezinho? Escalado para escrever sobre a substância, resolvi tirar a prova dos nove. Fui ao supermercado e providenciei um estoque de café, Coca-Cola, chá e energético. Durante uma madrugada de trabalho, eles teriam como desafio me manter acordado e concentrado até o fim desta reportagem.
Nada muito original. Cada vez mais gente faz uso da cafeína como droga utilitária, seja para agüentar baladas intermináveis, seja para manter-se alerta em madrugadas de jogatina online ou, como eu, trabalhar. “Hoje todo mundo dorme menos do que precisaria. As pessoas buscam o café pra se manter acordadas. Alguns conscientes dos efeitos, outros não”, diz Sergio Tufik, coordenador do Instituto do Sono da Unifesp.
Haja café. De 2003 pra cá o brasileiro aumentou em 23% o consumo da bebida e já toma, em média, impressionantes 74 litros por ano. A intensificação do ritmo de vida pode ser uma das explicações. “Numa sociedade como a nossa, o uso da cafeína está intimamente relacionado à sensação de que um dia de 24 horas já não basta”, diz o psiquiatra Guilherme Focchi, do Grupo Interdisciplinar de Álcool e Drogas da USP. É como se baldes de cafezinho – ou de energéticos, chás e congêneres – pudessem prolongar o dia útil em algumas horas.
A percepção desse efeito não vem de hoje. Os homens da Pré-História mastigavam algumas sementes e folhas pra diminuir a fadiga. Na China, folhas caídas ao acaso em potes de água fervente deram origem ao chá. Do outro lado do mundo, os maias preparavam uma bebida quente à base de cacau chamada xocoati, apreciada menos por seu sabor amargo que pela sua capacidade revigorante (que mais tarde viraria chocolate, também rico em cafeína).
Mas o principal dos estimulantes naturais viria da África, por volta do século 9. Diz a lenda que um pastor de cabras etíope percebeu que o rebanho ficava agitado depois de comer as frutas de um arbusto. Ele mesmo provou e viu que aquilo fazia mesmo efeito. Pouco tempo depois os comerciantes árabes tiveram contato com esse segredo e levaram sementes para plantar no Norte da África e Oriente Médio. Lá, inventaram uma bebida com os grãos da fruta torrados e misturados à água fervente.
O café só chegaria à Europa no fim do século 16, com o comércio no Mediterrâneo. Em pouco tempo, virou item básico das refeições em família. Na Inglaterra, os homens trocavam a bebedeira nos pubs por empolgadas reuniões em cafeterias, a ponto de, no século 19, o rei proibir o consumo de café por temer conspirações.
O tempo passou e continuamos adeptos do expresso, curto, coado ou pingado. Até aí, céticos como eu poderiam atribuir o sucesso do café ao seu sabor forte e ao glamour associado às cafeterias. Mas ficou mais difícil ignorar o efeito utilitário da cafeína no final da década de 1980, com a aparição da marca Red Bull.
Em 1982, o austríaco Dietrich Mateschitz descobriu na Tailândia um tônico chamado Krating Daeng (“touro vermelho”, na língua local). A bebida, com 80 miligramas de cafeína (o mesmo de uma xícara de café), era muito usada por trabalhadores que precisavam ficar alertas durante a noite. Com aguçado tino comercial, Mateschitz comprou os direitos da fórmula, criou uma embalagem bonita, modificou o sabor e, em 1987, lançou o produto no mercado internacional. Em 2007 foram consumidas 3,5 bilhões dessas latas no mundo.
Depois de dominar um mercado que há 20 anos nem existia, a Red Bull ganhou dezenas de concorrentes – todas as grandes empresas de bebidas, como a Pepsico e a Coca-Cola, lançaram similares. A fórmula não muda muito: além da cafeína, os energéticos têm uma alta dose de taurina, composto descoberto na bile de bois (hoje sintético) que alivia a fadiga muscular. O original continua firme na liderança, mas a concorrência está cada vez mais potente.
Ano passado estreou nos EUA o controverso Cocaine, que tem 3,5 vezes mais cafeína que o Red Bull (veja o quadro na pág. 81). Por enquanto, é difícil que bombas como essa apareçam no Brasil: a Anvisa estabeleceu limites para a quantidade de cafeína, taurina e inositol nas “bebidas prontas” – coincidência ou não, o máximo é o que já está na fórmula do Red Bull.
E funciona mesmo?
Dizem que sim. A cafeína é um composto químico bem conhecido pela ciência: a trimetilxantina ou C8H10N4O2 que, no nosso corpo, tem efeito estimulante. “A bebida estimula o sistema normal de vigília, aumentando a atenção, a concentração e a memória”, diz o médico Darcy Roberto Lima, coordenador científico do projeto Café & Saúde, do Ministério da Agricultura. Certo, mas as minhas primeiras doses não pareciam surtir esse efeito. Lá pela meia-noite, eu já havia tomado uma lata de Coca-Cola e uma xícara grande de café e ainda não sentia nada de muito diferente em meu organismo. Afinal, quanto de cafeína uma pessoa precisa tomar para ser dominado pelo efeito da droga?
Depende de quem você é. O efeito varia com a idade, o peso e a capacidade do fígado de processar a substância. Uma xícara média de café é capaz de deixar um adulto alerta por 3 a 6 horas. Aliás, experiência própria: melhor que tomar uma dose alta de uma vez é consumir várias doses menores em intervalos de duas horas. A fisiologia explica: a cafeína age rápido, mas, em 3 horas, sua presença no organismo cai pela metade. Repondo a substância antes de isso acontecer, você mantém a adenosina longe dos receptores cerebrais e se mantém alerta.
A adenosina é a grande responsável pela sensação de sono. Esse neurotransmissor, que se acumula no cérebro ao longo do dia, diminui a atividade dos neurônios e dilata os vasos sanguíneos. É como se ele preparasse o cérebro para dar um reset na sua máquina. O que a cafeína faz é impedir a ação da adenosina, dando um gás à atividade neural e voltando a contrair os vasos sanguíneos. É por isso que muitos remédios para dor de cabeça contêm cafeína.
Se ela age como uma droga, também pode causar sintomas de dependência, ainda que esse vício não seja considerado doença psiquiátrica. Estudos apontam que consumidores regulares de cafeína ficam irritadiços, ansiosos ou com dor de cabeça se não tomarem sua dose diária de café. Pior: o corpo pode pedir quantidades cada vez maiores para se sentir bem. E exagerar na dose não é uma boa idéia. Mais de 500 miligramas de cafeína – ou 3 xícaras de café expresso forte – podem desencadear um processo de intoxicação. “Sob a ação da cafeína, os efeitos de estresse são aumentados: insônia, agitação, taquicardia, pupilas dilatadas”, explica a farmacologista Patrícia Medeiros, da UnB.
Foi justamente o que eu comecei a sentir depois de pouco mais de 10 horas e 663 miligramas de cafeína divididas em latas de energéticos e xícaras de café e chá. Àquela altura, já tinha me convencido de que o meu estado de alerta não era um mero entusiasmo com esta reportagem. E, entre taquicardias, idas e vindas ao banheiro, comecei a pensar: se o efeito em doses exageradas é mesmo parecido com os de drogas mais pesadas, será que o café pode matar? Pode, mas é pouquíssimo provável. O limite de ingestão é 150 mg por quilo de uma pessoa. Ou seja: uma mulher de 50 quilos pode morrer ao ingerir em um dia 7,5 gramas de cafeína, algo próximo a 100 latinhas de energético. Você há de convir que não é fácil realizar essa proeza.
Já aqueles efeitos colaterais são mais freqüentes. “Estudantes de medicina que passam a noite à base de cafeína chegam ao hospital tão trêmulos que sentem dificuldade para escrever. Para resgatar o sono, têm que tomar remédios para dormir. No fim das contas, também ficam dependentes de medicamentos”, diz Patrícia Medeiros.
O mundo acordado
Tudo começou com a luz elétrica, que garantiu claridade por mais tempo. Depois veio o aumento das responsabilidades – mais contas pra pagar, mais coisas para estudar, mais concorrência no emprego. Hoje, falta tempo para aproveitar tudo o que o mundo oferece.
E, assim, o homem moderno vem diminuindo o seu tempo médio de sono em uma hora por século. “Não sei se dormimos menos porque tomamos mais cafeína ou se a necessidade de ficar acordado nos obriga a tomar café. O fato é que estamos dormindo menos”, diz Dalva Poyares, neurologista da Unifesp. Ela, como todos os especialistas ouvidos pela reportagem, concorda que há uma relação entre café, falta de sono e horas (mal) dormidas do mundo. Ainda não se sabe como ela funciona, mas uma coisa é fato: os paulistanos estão dormindo, em média, 6 horas e meia por dia, contra 7 horas e meia há cerca de 40 anos.
Não foi má idéia aproveitar a noite trabalhando e seguir direto para uma reunião sem o menor sinal de cansaço. Mas essa falta de sono tem preço. Só nos EUA, gastam-se US$ 15 bilhões por ano em despesas de saúde relacionadas à insônia e perdem-se US$ 50 bilhões em produtividade desperdiçada. “Nós temos que reconhecer as conseqüências da sonolência com o mesmo vigor que admitimos o impacto social do álcool”, dizem os pesquisadores Michael Bonnet e Donna Arand, da Universidade de Wright em Ohio (EUA), no estudo We Are Chronically Sleep Deprived (“Temos Privação Crônica de Sono”), de 1994. A pesquisa indica que, se o período de sono noturno for reduzido entre 1h20 e 1h30, a diminuição do estado de alerta matutino encosta nos 32%. Um estudo da Unifesp mostrou que ao menos 27% dos acidentes de trânsito no Brasil estão associados à sonolência. E o crescimento do mercado de café e energéticos vem colado a tudo isso.
Segundo Mark J. Penn, autor do livro Microtrends (sem tradução para o português), o aumento exagerado do uso da cafeína é parte de um fenômeno maior de pessoas tentando expandir os limites do corpo, mesmo sem precisar (vide o alto consumo de pílulas contra impotência entre homens saudáveis). Pra que dormir se há tanta coisa legal para fazer de madrugada? Depois de 38 horas acordado, posso afirmar: seu corpo precisa. Vá por mim.
Diário de um insone
Em 18 horas, nosso repórter consumiu 963 mg de cafeína
21h
Jantar leve, mas com Coca-Cola. Primeiras 36 mg de cafeína da noite, preparando para o experimento.
22h45
Ida ao mercado. Compro 5 rótulos de energéticos. Na saída já tomo o primeiro, gelado: Flash Power (80 mg de cafeína).
23h30
Uma xícara média de café extraforte, feito em casa. São 150 mg de cafeína para enganar o sono que ameaça bater. Energéticos na geladeira.
1h
Uma lata de Red Bull e outra de Bad Boy quase em seqüência. Mais 160 mg de cafeína e 2 g de taurina, que deixa meus músculos relaxados.
2h
Boa concentração, trabalho rende. Talvez o primeiro efeito seja um excesso de energia para o horário: ligo o videogame e bato a bateria de Rock Band.
3 - 4h
Como a cafeína tem uma meia-vida de 3 a 4 horas, é bom renovar o estoque. Uma lata do energético Burn (37 mg de cafeína + ginseng e alguma coisa de guaraná) e pouco depois um chá preto de saquinho (50 mg), para espantar o frio. Até agora foram 513 mg, ainda dentro do “saudável” para os meus 67 kg.
4h - 5h
Sinto uma certa dor de cabeça. Talvez excesso de tempo no computador. Deito para ver se durmo. Meia hora na cama, não consigo.
5h
De volta ao trabalho, terceira ida ao banheiro. A cafeína é diurética e parece que tudo que você bebe sai pouco depois. Talvez até mais. Não há cansaço muscular ou mental.
6h30
Desisto de dormir – sem sono. Ida à padaria, café com leite grande (100 mg de cafeína). Na volta, mais idas ao banheiro. Trabalho continua rendendo.
7h30
Para espantar o frio, mais chá (50 mg). O coração começa a ficar um pouco acelerado. Não parece que vou enfartar, mas é como se tivesse subido uma escada.
8h30
Quando me levanto, sinto uma dor abdominal. Sentado e trabalhando, não sinto nada. Continuo trabalhando normalmente.
10h
Ainda falta provar o Flying Horse (80 mg de cafeína). Bebo antes de uma reunião na redação da SUPER. Nenhum sinal de cansaço, físico ou mental.
13h
Almoço com Coca-Cola e café expresso. Mais 150 mg de cafeína na conta. A vontade constante de ir ao banheiro tem um incômodo: relaxamento de esfíncter, outro efeito colateral da cafeína. Em outras palavras, é mais difícil segurar a vontade: e a “missão” fica mais demorada e dolorida.
15h
Volto ao trabalho e decido que uma lata de chá gelado vai ser a última dose de cafeína do meu experimento. Dores abdominais continuam, dor de cabeça volta.
17h
Continuo acordado, alerta. Mas as dores e idas ao banheiro fazem a brincadeira perder a graça.
19h
Sinais de cansaço começam a aparecer mais fortes.
21h
Deito e durmo, 38 horas depois de acordar pela última vez. Acordo no dia seguinte, quase 12 horas depois, por causa do sono acumulado.
A cafeína no seu corpo
O efeito pode vir em meia hora, se você tomou café, ou ser quase imediato, no caso de guaraná em pó
1. Divisão de poderes
Durante a digestão, a cafeína gera 3 metabólitos: a teobromina, um vasodilatador, a teofilina, que expande os brônquios, e a paraxantina, que acelera o metabolismo das células de gordura.
2. Mudança de ordem
No cérebro, a cafeína é confundida com a adenosina, um neurotransmissor que dilata os vasos e inibe a liberação de hormônios relacionados ao bem-estar. A cafeína ocupa o lugar da adenosina e reverte todo o processo.
3. Sinal de alerta
O corpo entende uma situação de alerta e as glândulas supra-renais liberam adrenalina: o coração acelera, as pupilas se dilatam e os músculos ficam mais rígidos.
Se ligue
Um expresso tem mais cafeína que um Red Bull
Cocaine (240 ml) - 280 mg
Café Starbucks Tall (473 ml) - 260 mg
Café coado (200 ml) - 80 a 130 mg
Café expresso (50 ml) - 100 mg
Red Bull (240 ml) - 80 mg
Chá gelado (355 ml) - 70 mg
Aspirina Forte (uma cápsula) - 65 mg
Chá preto (um saquinho) - 50 mg
Dorflex (um comprimido) - 50 mg
Guaraná em pó ( 1 g) - 44 mg
Coca-Cola (355 ml) - 34 mg
Chocolate amargo (170 g) - 31 mg
Chocolate ao leite (170 g) - 10 mg
Para saber mais
A História do Café
Ana Luiza Martins, Editora Contexto, 2008.
Projeto Café & Saúde
www.cafeesaude.com
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